sábado, 19 de setembro de 2009

A infância de meu pai

O cheiro de goiaba vive lá. Muitos verões choveram água quente pela pele e assim poderiam continuar a escorrer por séculos o tanto que fosse, sem que nada de torrencial nestes anos velhos houvesse para dissolvê-lo. Nem mesmo o sangue que bebeu no copo estreito da esperança disfarçou algum sentido, por mais sabor que lhe faltara nas tardes em que o sol era o sol dos miseráveis. Os verões e o sangue passam tragados pelo tempo e assim há de ser por eras. Não que a vida deva ser pouca, pois esta é tanta e tão intensa quanto uma nau desenfreada rumo à pior tormenta, com suas calhas revestidas pela madeira mais podre destes sujos descaminhos de um mundo cego. Aí está um jeito bom de viver! Um destrambelhar insone que por mais insano e mesmo após muitos verões terem chovido água quente pela pele, nada de torrencial nestes anos velhos foi capaz de dissolver. O cheiro de goiaba ainda vive lá.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Livre

Há muito que sua enxada batia forte. Tão forte que ao chegar um sopro quente em sua pele, sentiu como se num rio estivesse a brincar com sua gente. Tal foi a delicadeza, que sentou para ver o vento com mãos e pés que não se agüentavam mais. Nunca leu palavra alguma da poesia mais simples que fosse, mas via o vento como ninguém, passando com atenção pelas sombras que faziam as folhas na plantação, páginas sem rumo, sem dono, que na lida ensinavam uma vida de pássaro. Observava os bichos comerem frutas, milho, mato; conversava com seu fumo, sua fumaça, sobre as coisas que via. Viu como as cercas eram firmes, como seus calos eram duros, viu a casa grande do Senhor e sua roça formosa. E disso tudo que via, o que mais gostava era o vento, sem rumo, sem dono, sem sofrimento. Por hoje, a lida aos montes lhe cansaria, tanto trabalho que lhe restava na terra que não lhe pertencia. Apagou a guimba na crosta dura da mão e fez com que os pés cansados doessem novamente o sustento que lhe esperava doer. As tais cercas, porém, não bastaram para conter o que o vento lhe contou, pois a noite reserva grandes novidades à sua gente e seu fumo, que sem dono e sem rumo brincarão o sopro quente sob um céu de estrelas.