terça-feira, 9 de junho de 2009

Fome que desaloja

Frente à razão há um espelho. Nesta mesma sala, todas as portas se fecham e todos os assentos presentes possuem uma perspectiva apenas e somente uma maneira de observar o que se reflete. O prédio de nobres colunas reune ávidos famintos com suas dores de estômago, numa fome que abre estradas e desaloja abrigos centenários que resistiam belos e simples até a chegada destas construções. Há de se desejar ver com clareza, pois então fecham-se também as cortinas para que uma luz apenas se direcione sobre o espelho. Lá fora, o cheiro da chuva é forte. Encostam-se e reclinam suas poltronas enquanto aguardam o iluminar da razão nesta sala de cheiro algum. Cada posição, singularmente ajustada, evita contrastes que ofusquem a verdade, única e soberba. A imagem evoca suspiros que ignoram ser este espelho feito somente para refletir um ângulo, existindo apenas para a vaidade da própria razão. Nem cortinas ou cadeiras, nem salas ou prédios seriam necessários, pois tecidos e tábuas vem das roupas e das casas dos que desalojados foram para saciar uma fome inventada por gente gorda. E ao acabar o espetáculo, é essa gente que desfaz o foco, desalinha poltronas e desaloja saberes à espera que outros espectadores, aos prantos emocionados, ofusquem seus olhares por louvor à verdade.

Um comentário:

tutaméia disse...

"...Mas a multidão é enorme; suas moradas não têm fim. Fosse livre o terreno, como voaria, breve ouvirias na porta o golpe magnífico de seu punho. Mas, ao contrário, esforça-se inutilmente; comprime-se nos aposentos do palácio central; jamais conseguirá atravessá-los; e se conseguisse, de nada valeria; precisaria empenhar-se em descer as escadas; e se as vencesse, de nada valeria; teria que percorrer os pátios; e depois dos pátios, o segundo palácio circundante; e novamente escadas e pátios; e mais outro palácio; e assim por milênios; e quando finalmente escapasse pelo último portão – mas isto nunca, nunca poderia acontecer – chegaria apenas à capital, o centro do mundo, onde se acumula a prodigiosa escória. Ninguém consegue passar por aí, muito menos com a mensagem de um morto. Mas, sentado à janela, tu a imaginas, enquanto a noite cai."

de um médico rural